Ao tomarmos a arquitetura como a atividade que modifica o sítio natural e o transforma em um ambiente apropriado para o convívio humano – seja com um prédio ou a urbanização de um território – podemos compreender a ação do arquiteto como algo que deve servir às pessoas. Invoca-se, nesse sentido, o conceito histórico do humanismo e do republicanismo – a coisa pública, no latim.
Para que a arquitetura passasse a ter o reconhecimento com a principal arte/técnica, na cultura greco-romana, foi necessário naturalizar a noção de que a sociedade e a cultura são moldadas também pela relação das pessoas no espaço. Ou seja, a boa arquitetura poderia beneficiar as pessoas. Por exemplo, a construção da Ágora ateniense, local dos encontros e das trocas, prefigurava nossas atuais praças e espaços de convivência pública – tal como ocorre no importante vão do MASP na cidade de São Paulo.
Ou ainda, a invenção da Loggia – construção do tipo galeria avarandada – que tem singular importância ao oferecer proteção às pessoas contra as intempéries quando essas estão nos ambientes públicos, além de servir como zona de transição entre o público e o privado nos prédios desde o Renascimento italiano. Os ambientes abertos e livres, tais como os parques públicos, que recebem tratamento paisagístico, também são contemplados pela cultura arquitetônica, e significam algo especial para as pessoas. Portanto, a relação humana se faz e se transforma com o espaço arquitetural, logicamente não somente por ela, mas também por ela. A configuração ambiental da Loggia, por exemplo, deu a oportunidade para o aparecimento do espaço da compra e da venda: são as feiras cobertas, que até hoje são fundamentais na linguagem comercial tradicional.
É possível fazer análises topológicas de prédios e ambientes construídos para demonstrar que essas questões históricas ainda são verdadeiras e devem ser levadas em conta para a continuidade da produção de espaços que tenham qualidade e significados positivos. A nossa condição de vida em sociedade pressupõe o bom convívio entre as pessoas. O local da ação do sujeito é, por excelência, no espaço físico, assim a convivência ocorre no espaço público.
De acordo com a compreensão de Hannah Arendt (1906-1975), o espaço público é o lugar onde o homem se realiza por completo, pois ultrapassa a condição de simples ser vivente e se torna o ser político. Arendt retoma o conceito aristotélico de animal político. Portanto, um prédio público ou uma praça aberta pode ser o catalizador de um conjunto urbano que possibilita essa convivência necessária. Como dissemos antes, o vão do MASP (1957 de Lina Bo Bardi) é um ótimo exemplo, pois é palco de inúmeras manifestações públicas: mostras de arte, feiras livres, palestras, aulas públicas e protestos. Com isso a convivência se efetiva, as trocas ocorrem a partir das relações humanas. Nesse sentido é o ambiente construído que dá o suporte para a vida pública ocorrer e garante a experiência do animal político (o animal do convívio, ou da troca).
Campus Pampulha – uma breve análise topológica
O principal campus universitário de Belo Horizonte vem sendo construído desde 1928, pois um ambiente universitário nunca está finalizado, está sempre em transformação pela ação das pessoas. Esse território é chamado de Campus Pampulha, abriga as principais unidades da Universidade Federal de Minas Gerais e foi o primeiro projeto para uma “cidade universitária” no país. O Campus Pampulha é um oásis verde dentro da malha urbana na zona norte da cidade, seu paisagismo é bem cuidado, com flores ornamentais que são um deleite aos usuários. Há um permanente caminho sombreado por árvores, fato que favorece a quem transita a pé pelo campus. A altimetria e os afastamentos entre as edificações garantem ventilação adequada e ajardinamentos, característica que cuida da sensação térmica amena para as pessoas que ali estão. Sua configuração territorial garante zonas isolamento para algumas atividades acadêmicas que requisitam isso, seguindo, em certa medida, o conceito de campus universitário americano.
Os pressupostos projetuais originários da Cidade Universitária, o atual Campus Pampulha, foram os vanguardistas modernistas e se ligam diretamente com a construção do famoso bairro da Pampulha (1943), fruto da obra do então prefeito Juscelino Kubistchek, em conjunto com o arquiteto Oscar Niemeyer. Ambos os empreendimentos – cidade universitária e bairro Pampulha – estavam subordinados aos ideais políticos fundadores do modernismo brasileiro, sintetizados na máxima: Brasil, o país do futuro.
Os registros fotográficos da construção da Cidade Universitária revelam que o sítio foi drasticamente modificado. A topografia foi ajustada em função da solução projetual imaginada pela equipe de arquitetura da época, liderada pelo então professor da Escola de Arquitetura, Eduardo Mendes Guimarães Júnior. Um grande espaço cívico foi executado: uma esplanada gramada que garantia a imponência do primeiro e principal prédio do conjunto arquitetônico: a moderna Reitoria (1962). Essa esplanada libera a visão do território para o prédio.
A construção da Reitoria foi finalizada em 1962, um prédio de oito pavimentos; com planta livre; pilotis; esquadria de alumínio e vidro, independentes da estrutura de concreto; janelas em fita para desimpedir a vista da paisagem e um espelho d’água à sua frente não poderia expressar melhor o conceito fundador do estilo modernista. Hoje, o prédio é tombado pela municipalidade e é tratado com máximo respeito pela atual equipe de planejamento do campus. Por exemplo, o plano diretor vigente para obras no Campus Pampulha impede que outras edificações sejam erguidas de modo desordenado e que violem a altimetria máxima do prédio original, assim ele funciona como ordenador da paisagem.
A esplanada gramada se estende até a principal via do Campus, a Avenida Reitor Mendes Pimentel que é um verdadeiro bulevar. Ali as pessoas podem desfrutar da ambiência de um belo parque público. O gramado recebeu no ano de 1969 o Monumento a Aleijadinho, projetado pelo professor arquiteto Sylvio de Vasconcellos, ícone do modernismo mineiro. Essa esplanada é um espaço referencial para a comunidade universitária que, além de seu caráter simbólico, abriga diversas atividades ao longo do ano, tais como: apresentações artísticas, culturais e acadêmicas complementares. Algumas dessas atividades ocorrem nos finais de semana e nas férias escolares, quando as aulas e pesquisas são reduzidas. Desse modo, amplia-se de modo significativo o uso de caráter público do campus, o que garante uma maior relação humana entre a instituição e a cidade, que é convidada a usar o campus como uma área de lazer.
Uma praça em sentido originário
Complementarmente à esplanada da Reitoria, há a Praça de Serviços. Esse espaço foi construído em 1994, ou seja, 32 anos após a inauguração da Reitoria. A Praça de Serviços tem o formato de uma ferradura voltada com sua cavidade para o vetor de chegada, o Bulevar Reitor Mendes Pimentel. Desse modo ela se abre à chegada das pessoas, faz como um movimento de abraço ao fruidor do Campus. No centro dessa ferradura há um anfiteatro coberto por uma tenso estrutura, local que abriga diariamente atividades artísticas – teatro, performances e música – e falas públicas – aulas ou palestras, por exemplo. O desenho da ferradura é a materialização de lojas que abrigam serviços essenciais, tais como: restaurantes, cafés, livrarias, farmácias, gráficas e bancos. Essa parte edificada forma uma galeria avarandada contínua e curvada (ferradura) de modo que as atividades culturais do anfiteatro podem ser aproveitadas por todos que usam os serviços essenciais. Por fim, essa varanda é local de feiras tradicionais que atendem mensalmente a comunidade universitária, são feiras de: livros, artesanatos de Minas Gerais e produtos orgânicos.
O Campus Pampulha já foi descrito como uma ilha de sossego na cidade e é uma das principais obras universitárias do país. Para a arquiteta e professora Maria Lúcia Malard um campus isolado da cidade, com edifícios isolados, gerando pessoas e ideias isoladas, em nada se identifica com a Universidade contemporânea. Ela diz que é preciso conferir ao território universitário uma qualidade de vida urbana relativa, em que as interações, as associações e as pessoas fazem um cotidiano rico em crítica e criatividade. De modo que a condição de ilha para um campus contemporâneo serve para cuidar de algumas atividades acadêmicas, mas não é uma ideia que deva ser universalizada. Portanto, a maior aproximação entre sociedade e a universidade é fundamental, tornando esse espaço cada vez mais público. E é exatamente por isso que há um esforço contínuo promover atividades no território do Campus Pampulha, incrementando e diversificando os usuários no ambiente intramuros.
O projeto como elemento público
É comum que órgãos brasileiros que fazem a projetos e obras públicas consultem a tradição de projetação da UFMG. A tradição de conceber e oferecer espaços públicos de qualidade está ligado a uma cultura de projetação colaborativa e participativa, ancorada em uma equipe permanente de arquitetos e engenheiros. Essa tradição projetual originou-se nos primeiros anos da então UMG – Universidade de Minas Gerais, desde 1927, e federalizada em 1949. O primeiro departamento de projetos se chamava Escritório Técnico, e foi responsável pela implantação da Reitoria e do Plano Cordeiro que tinha traços inegáveis do modernismo. O plano inicial, desenvolvido pelo Engenheiro Eduardo Pederneiras, de 1928, foi rejeitado pela comunidade por ter um caráter neoclássico, o que apontava contra o ideal progresso modernista desejado. O Plano Cordeiro, construído, funcionou como plano diretor de ocupação e de assentamento. Foi desenvolvido sob a coordenação do Arquiteto Alípio Castelo Branco com assessoria do paisagista Waldemar Cordeiro (1967-1975).
Essa cultura projetual colaborativa carrega em si um caráter público, que pode passar despercebido para o grande público, mas é uma característica própria de fazer arquitetura. É essa colaboração, a partir de uma projetação participativa, baseada no diálogo permanente entre os diferentes atores da universidade, que sustenta a capacidade de traduzir as expectativas e necessidades da comunidade em formas materiais.
Referências bibliográficas
BUFFA, Ester; PINTO, Geslson De Almeida. Arquitetura e educação: câmpus universitários brasileiros. São Carlos: Edufscar, 2009.
Duarte, Regina Horta; Starling, Heloisa Maria Murgel. Cidade Universitária da UFMG: História e Natureza. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
MACIEL, Carlos Alberto; MALARD, Maria Lúcia. Territórios da universidade: permanências e transformações. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
UFMG. Entrevista no Boletim da Universidade: O campus ainda é uma ilha de sossego. Disponível em: https://www.ufmg.br/boletim/bol1380/quinta.shtml. Acesso em 24 de abril de 2019